“Quem define o que é loucura em um mundo tão insano?” A pergunta que ecoa na voz e na trajetória de Estamira Gomes de Sousa segue atual e provocadora
No documentário que leva seu nome, lançado em 2004, acompanhamos a vida de uma mulher que, aos 63 anos, enfrenta os desafios da saúde mental enquanto sobrevive recolhendo materiais no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Mais do que um relato biográfico, o filme se transforma em uma potente crítica às estruturas sociais que insistem em invisibilizar aqueles que vivem nas fronteiras da normalidade.
Entre o lixo e a lucidez: quem é Estamira?
O documentário dirigido por Marcos Prado nos conduz à rotina de Estamira, uma mulher que, por mais de duas décadas, trabalhou no maior lixão da América Latina. Diagnosticada com distúrbios mentais, ela transforma sua condição em uma potente ferramenta de reflexão sobre Deus, o mundo, o consumo e o próprio sentido da existência. Suas falas, marcadas por poesia e filosofia, rompem as barreiras do estigma social e escancaram contradições que muitos preferem não enxergar.
Longe de ser apenas um retrato da loucura, o filme questiona o que, de fato, significa ser são em uma sociedade que frequentemente marginaliza, descarta e silencia quem não se encaixa nos padrões. Estamira não é só personagem; é voz, denúncia e resistência.
Saúde mental na linha de frente da exclusão
A trajetória de Estamira expõe, com crueza, como os cuidados com a saúde mental se tornam quase inacessíveis para pessoas em situação de vulnerabilidade. No filme, suas crises, suas dores e sua visão de mundo são, muitas vezes, interpretadas mais como incômodos sociais do que como manifestações de um problema que exigiria acolhimento e cuidado digno.
Enquanto isso, o lixão — espaço de descarte tanto de objetos quanto de pessoas — torna-se palco de uma vida que pulsa entre o abandono e a resistência. É nesse cenário que Estamira elabora suas próprias respostas para dilemas universais, muitas vezes ignorados pela sociedade formal.
Filosofia marginal: uma crítica vinda da borda
“Todo mundo tem que se responsabilizar. Porque aqui é uma passagem, e ninguém é dono de nada.” A fala de Estamira reflete sua percepção crua e, ao mesmo tempo, profundamente filosófica sobre a sociedade contemporânea. Seus discursos, carregados de metáforas e questionamentos espirituais, funcionam como espelhos desconfortáveis.
O documentário, ao dar espaço para que ela conduza sua própria narrativa, convida o espectador a rever conceitos sobre sanidade, consumo, espiritualidade e pertencimento. Nesse processo, desconstrói a falsa ideia de que sabedoria é privilégio dos formalmente educados ou dos socialmente integrados.
Narrativa, estética e impacto social
A linguagem visual do filme alterna entre imagens coloridas e preto e branco, recurso que acentua tanto a dureza do ambiente quanto a densidade dos pensamentos da protagonista. A estética, aliada a uma condução narrativa que prioriza a voz de Estamira, permite que o documentário ultrapasse o mero registro da realidade e se aproxime de uma obra poética e política.
Premiado em diversos festivais, incluindo o Festival do Rio e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Estamira não apenas sensibiliza, mas também provoca reflexões sobre quem são os verdadeiros esquecidos pela sociedade. Suas questões atravessam o tempo e continuam relevantes em debates sobre inclusão, saúde mental e justiça social.
Reflexões que não cabem no esquecimento
Assistir a Estamira, atualmente disponível na Globoplay e no YouTube, é mais do que um exercício de empatia. É um convite a repensar as estruturas que insistem em classificar, hierarquizar e excluir. A história de Estamira denuncia, sem dizer, a negligência com populações inteiras que seguem à margem — seja por sua condição econômica, mental ou social.
Ao final, fica a pergunta que reverbera além da tela: quem, afinal, está realmente são em um mundo que naturaliza tanto a desigualdade quanto a indiferença?
