“O julgamento de uma mulher revela também as contradições e preconceitos de toda uma sociedade.” Saint Omer (2022), dirigido por Alice Diop, acompanha uma observadora que se vê confrontada por suas próprias memórias enquanto presencia o julgamento de Laurence Coly, acusada de infanticídio. O filme propõe uma reflexão profunda sobre maternidade, justiça e exclusão social.
O tribunal como espelho social
O filme se concentra quase integralmente no tribunal de Saint-Omer, onde o caso de Laurence Coly se desenrola. Cada depoimento, cada pergunta da juíza, funciona como um espelho das tensões e preconceitos da sociedade francesa contemporânea, revelando estereótipos de classe, raça e gênero que permeiam até mesmo a aplicação da lei.
Para Rama, a escritora que acompanha o julgamento, o tribunal se torna também um espaço de introspecção. Enquanto observa, ela revisita sua própria experiência como mulher negra, mãe e imigrante, identificando paralelos entre sua vida e a acusada. Esse duplo olhar amplia a reflexão do espectador sobre a justiça, tornando-a íntima e social ao mesmo tempo.
Maternidade e dilemas éticos
No centro do drama está a complexidade da maternidade. Laurence Coly é apresentada não apenas como ré, mas como mulher confrontada por uma sociedade que espera dela comportamentos ideais e perfeitos. O filme explora o peso da culpa, do julgamento moral e do estigma, mostrando que a maternidade nem sempre se desenrola dentro dos padrões impostos.
Ao mesmo tempo, Saint Omer questiona a universalidade desses padrões. A narrativa sugere que julgamentos sobre mães — especialmente mulheres negras e imigrantes — muitas vezes carregam preconceitos invisíveis, revelando a desigualdade estrutural que atravessa instituições e comunidades.
Identidade, imigração e alteridade
O filme também toca na experiência da imigração e da alteridade, destacando como fatores sociais e culturais moldam percepções sobre culpabilidade e comportamento. Laurence, mulher negra e imigrante, se torna símbolo de um grupo historicamente marginalizado, enquanto o processo judicial expõe tensões raciais e sociais persistentes na França.
Rama, ao se conectar com a acusada, percebe como memória, cultura e identidade influenciam julgamentos e empatia. Essa reflexão amplia o foco do filme, mostrando que justiça não é apenas a aplicação da lei, mas também a capacidade de entender contextos humanos complexos.
Estética, narrativa e impacto
Saint Omer adota uma estética austera, com longos planos dentro do tribunal, poucos movimentos de câmera e diálogos densos. Essa sobriedade reforça o caráter teatral e psicológico da obra, permitindo que o peso das palavras e a atuação contida de Guslagie Malanda conduzam a tensão.
O filme conquistou o Leão de Prata – Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza (2022) e representou a França no Oscar de Melhor Filme Internacional (2023). Aclamado por seu rigor estético e profundidade temática, tornou-se referência contemporânea para debates sobre justiça, gênero, imigração e preconceito social.
Saint Omer é mais do que um drama de tribunal; é uma meditação sobre como a justiça muitas vezes reflete desigualdades históricas e sociais. Ao colocar o espectador frente a dilemas morais e humanos, a obra nos lembra que julgamentos legais e sociais carregam camadas de complexidade que vão muito além das leis escritas, tocando o âmago da humanidade.
