Uma família de gângsteres pós-Primeira Guerra vive poder, desejo e política em meio à turbulência social — liderada por Tommy Shelby, um anti-herói frio e estratégico.
Entre Birmingham e Westminster: a ascensão da ambição
Lançada em 2013 pela BBC e distribuída globalmente pela Netflix, Peaky Blinders não é apenas uma série de época. É um estudo detalhado sobre como o crime pode se legitimar — e sobre o que acontece quando uma gangue de apostas e contrabando passa a disputar espaço político em um sistema corroído por desigualdades. O protagonista, Tommy Shelby, conduz esse movimento com frieza quase cirúrgica, ampliando os horizontes da gangue muito além das ruas lamacentas de Birmingham.
Ambientada no pós-guerra britânico, a série parte do caos social para construir uma crítica ao próprio tecido das instituições. O tráfico de armas, os negócios ilícitos e a corrupção vão sendo absorvidos por estruturas formais, enquanto a figura do líder gângster se aproxima perigosamente do parlamentar respeitável. O poder muda de roupa — mas não necessariamente de lógica.
Um anti-herói moldado pela guerra
Interpretado por Cillian Murphy, Tommy Shelby é o núcleo emocional e estratégico da série. Um homem assombrado pelas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, que canaliza sua dor em decisões calculadas e numa liderança implacável. Seu trauma não é apenas pessoal — ele é simbólico de uma geração que retornou do front desorientada, endurecida e disposta a tudo para não ser deixada para trás.
Essa masculinidade calejada permeia todos os episódios, refletida também nas figuras de Arthur, John e outros homens da gangue. Mas o roteiro de Steven Knight vai além da simples glorificação da violência. Ele expõe as rachaduras emocionais, o desgaste psicológico e as crises existenciais de homens que foram treinados para matar — e que agora buscam um novo propósito em tempos de paz incerta.
Poder feminino em um universo de ferro e fumaça
Se o mundo de Peaky Blinders parece dominado por homens, é nas brechas desse ambiente que figuras como Polly Gray (Helen McCrory) se impõem com vigor. Tia dos irmãos Shelby e tesoureira da gangue, Polly é tão estratégica quanto o próprio Tommy — mas sua força também está na sensibilidade e no senso de justiça que aplica entre as violências e alianças do submundo.
Outras personagens femininas, como Ada e Lizzie, também refletem a complexidade das mulheres em uma sociedade que tenta silenciá-las. Longe de serem meras coadjuvantes, elas exercem influência direta nos rumos da trama, muitas vezes sendo as únicas vozes lúcidas diante do colapso moral dos Shelby. É nesse contraste que a série consegue tensionar temas como autonomia, pertencimento e a luta por espaço em estruturas historicamente excludentes.
Estética punk-vitoriana: um estilo que virou culto
A identidade visual de Peaky Blinders é uma de suas assinaturas mais reconhecíveis. Figurinos de alfaiataria impecável, cortes de cabelo estilizados e uma trilha sonora moderna — que vai de Nick Cave a Arctic Monkeys — compõem um universo anacrônico e fascinante. O passado é encenado com lente contemporânea, em um casamento entre o dramático e o pop.
Esse tratamento visual e sonoro não é apenas decorativo: ele intensifica o caráter mítico da narrativa. Ao transformar os Peaky Blinders em ícones culturais, a série rompe a barreira da tela e invade a moda urbana, o turismo histórico e até mesmo o discurso político em parte do imaginário europeu. O estilo torna-se linguagem — e linguagem, poder.
Lealdade, família e as rachaduras internas
Por trás da frieza estratégica de Tommy Shelby, há uma teia de relações familiares carregadas de tensão. A lealdade entre irmãos, o papel ambivalente da matriarca Polly, os confrontos com primos e rivais — tudo contribui para uma dinâmica emocional que vai muito além do crime organizado. Os laços de sangue são tanto motor quanto obstáculo para os Shelby.
Com o passar das temporadas, as alianças se fragilizam, os traumas se acumulam e os dilemas éticos ganham peso. O que começou como uma saga de sobrevivência transforma-se em uma crise de identidade: até onde vale ir para manter um império em pé? A resposta, muitas vezes, é tão violenta quanto poética — e raramente simples.
Expansão internacional e o flerte com o fascismo
À medida que a gangue conquista território e influência, Peaky Blinders amplia seu escopo geopolítico. Negócios com mafiosos italianos, conflitos com gangues irlandesas e acordos com contrabandistas norte-americanos ampliam o mapa do poder. Mas é nas últimas temporadas, com a ascensão do fascismo na Europa e a presença de Oswald Mosley, que a série se torna ainda mais sombria e atual.
O envolvimento de Tommy Shelby com partidos políticos e sua entrada no Parlamento escancaram o perigo da manipulação ideológica. A série passa a investigar como estruturas autoritárias se infiltram nos sistemas democráticos — e como figuras carismáticas, mesmo aquelas com passados criminosos, podem se tornar peças centrais em projetos de poder excludentes e perigosos.
Um legado audiovisual e político
Com seis temporadas e um longa-metragem em produção, Peaky Blinders consolidou-se como uma das maiores criações televisivas do século XXI. Aclamada pela crítica e pelo público (93% de aprovação no Rotten Tomatoes), a série recebeu diversos prêmios e influenciou linguagens visuais e narrativas em produções de diferentes países.
Seu impacto, no entanto, vai além do entretenimento. Ao articular crime, política, desigualdade social e trauma de guerra, Peaky Blinders convida à reflexão sobre o que acontece quando sistemas falham — e quais alternativas perigosas podem surgir no vácuo deixado por instituições enfraquecidas. Nesse sentido, a série torna-se não apenas um retrato do passado, mas um espelho incômodo do presente.
Uma epopeia sobre identidade, ambição e sobrevivência
Mais do que violência ou glamour, Peaky Blinders oferece uma narrativa sobre pertencimento e ruptura. A trajetória dos Shelby não é apenas a de uma gangue, mas de uma comunidade marginalizada que busca voz, espaço e reconhecimento em um mundo que insiste em excluí-la. Seja pela força ou pela astúcia, eles tentam impor sua presença em um tabuleiro onde regras e justiça nem sempre andam juntas.
Nesse equilíbrio entre o poético e o brutal, a série revela sua essência: uma história sobre o custo do poder, a fragilidade dos vínculos humanos e a persistência da identidade diante de um mundo em transformação. Tommy Shelby, afinal, não é apenas um personagem — é o símbolo de um tempo em que o silêncio virou estratégia, e a sobrevivência, arte.
