Devil in Disguise: John Wayne Gacy (2021), série documental da NBC Studios exibida pela Peacock e licenciada pela Netflix, revisita um dos casos mais sinistros da história criminal dos Estados Unidos. Com depoimentos inéditos do próprio Gacy, a produção confronta o espectador com uma verdade incômoda: o mal pode ser carismático, funcional e, acima de tudo, invisível.
O homem por trás do monstro
Antes de ser um nome gravado na história do crime, John Wayne Gacy era um empresário de sucesso, voluntário comunitário e presença constante em eventos beneficentes. Usava fantasias de palhaço, animava festas infantis e era visto como um símbolo de boa vizinhança.
Essa imagem pública perfeita foi o escudo que o protegeu por anos enquanto escondia um cemitério de horrores no quintal de casa. A série mostra, com frieza cirúrgica, como Gacy se aproveitou da confiança e da negligência institucional para agir à vista de todos — e ainda ser admirado.
Entre o charme e o controle
A força de Devil in Disguise está em não transformar Gacy em um ícone do mal, mas em um manipulador de narrativas. Nas fitas de entrevista gravadas na prisão, ele se coloca como vítima, reescreve os fatos e tenta manter o controle da história mesmo após condenado.
É um retrato desconcertante sobre o poder do discurso e o quanto a sociedade está disposta a acreditar em quem fala com segurança, mesmo que esconda um abismo ético por trás da voz. O documentário transforma a manipulação de Gacy em uma metáfora da facilidade com que o mal se infiltra em estruturas sociais frágeis e instituições que falham em ouvir as vítimas.
Quando o sistema também falha
O caso de Gacy não é apenas sobre crimes individuais — é sobre omissões coletivas. Jovens desapareceram sem investigação séria, denúncias foram ignoradas, e preconceitos contra as vítimas (muitos homens, alguns LGBTQ+) contribuíram para o atraso na resolução do caso.
A série denuncia, sem didatismo, a falência de uma justiça seletiva, que escuta com mais atenção quem tem status e ignora os corpos marginalizados. É nesse ponto que o documentário transcende o gênero true crime e se aproxima de uma crítica social profunda — a de que a impunidade nasce onde a empatia é negada.
O mal como banalidade cotidiana
Com estética fria e montagem tensa, Devil in Disguise adota um tom quase clínico ao investigar como Gacy conseguiu viver tanto tempo sem ser descoberto. Os especialistas entrevistados falam sobre “dupla personalidade socialmente funcional” — a capacidade de viver entre o horror e a rotina como se fossem compatíveis.
A série convida o público a olhar para o mal não como algo distante ou sobrenatural, mas como algo possível — enraizado no carisma, na reputação e nas estruturas sociais que escolhem quem merece ser suspeito e quem merece ser admirado.
Memória, justiça e humanidade
Um dos méritos mais sensíveis da produção é devolver espaço às vozes esquecidas: familiares, sobreviventes e investigadores que lutaram contra o silêncio. Cada depoimento é um ato de resistência, lembrando que o verdadeiro protagonismo do caso pertence às vítimas — não ao assassino.
Devil in Disguise entende que o papel do jornalismo e do documentário é iluminar as zonas cinzentas da humanidade, sem glorificar monstros, mas questionando os mecanismos que os permitem florescer em meio à indiferença.
