Inspirada nos diários codificados de Anne Lister, a série Gentleman Jack (2019–2022), da BBC e HBO, revela a trajetória de uma mulher que viveu sua verdade em uma época em que isso poderia significar o exílio social. Combinando humor, romance e crítica, a produção faz da vida de Anne um espelho histórico sobre identidade, coragem e visibilidade.
Uma dama que não pedia permissão
Anne Lister (Suranne Jones) retorna à sua propriedade em Shibden Hall decidida a reerguer o nome da família — e fazer isso ao seu modo. Dono de um espírito afiado e vestes masculinas, Lister escandaliza a aristocracia vitoriana com sua independência financeira, domínio sobre negócios e, acima de tudo, seu afeto declarado por mulheres.
A série retrata com charme e firmeza essa recusa de Anne em se moldar às expectativas. Mais do que uma heroína queer, ela é uma gestora implacável, uma amante apaixonada e uma estrategista social. A quebra constante da quarta parede, em que Anne fala diretamente com o público, transforma a narrativa em um pacto íntimo com quem assiste.
Negócios, desejo e transgressão
Em Gentleman Jack, o coração da trama pulsa entre romance e resistência. O relacionamento com Ann Walker (Sophie Rundle) é marcado por desejo, vulnerabilidade e pelo desafio constante de existir em um mundo que insiste em rotulá-las como “amigas excêntricas”. A tensão entre sentimento e aceitação social cria camadas dramáticas densas, mas nunca perde o tom de esperança e humor.
Do outro lado, há a Anne gestora: envolvida com mineração, contratos e negociações que exigem dela firmeza diante de homens que não a enxergam como igual. A série transforma o espaço privado (Shibden Hall) em um símbolo de autonomia, onde o feminino não é sinônimo de fragilidade — mas de visão, cálculo e potência.
História viva, identidade visível
Baseada em mais de quatro milhões de palavras registradas em diários, parte delas codificadas para proteger seus segredos amorosos, a história de Anne Lister só foi revelada ao mundo décadas após sua morte. O resgate dessas páginas transforma Gentleman Jack não apenas em uma obra de entretenimento, mas em um ato de justiça histórica.
Nesse sentido, a série vai além da ficção: ela educa, inspira e corrige silêncios do passado. Mostra que a presença de mulheres LGBTQ+ sempre existiu, mesmo que soterrada por convenções e repressões. Ao dar rosto e voz a uma figura tão complexa, Gentleman Jack se alinha ao movimento de valorização das narrativas apagadas.
Estética que comunica
Com uma fotografia clara, figurinos detalhados e cenários vibrantes, a série rompe com a paleta sombria típica dos dramas de época. O visual reflete a energia de Anne e seu espírito fora do comum. A trilha sonora, que mistura acordes modernos e clássicos, acentua o dinamismo narrativo e a quebra de padrões.
Os diálogos são espertos, muitas vezes sarcásticos, revelando uma escrita que equilibra autenticidade histórica com ressonância contemporânea. Tudo isso torna Gentleman Jack uma série viva, envolvente e politicamente relevante, sem precisar ser panfletária.
