A série ELES (Them), criada por Little Marvin e produzida pela Amazon Studios, mergulha na interseção entre terror psicológico e crítica social. Ambientada em diferentes épocas, a antologia expõe as cicatrizes do racismo com cenas de horror gráfico e narrativas que ressoam até os dias atuais. Deborah Ayorinde e Ashley Thomas lideram um elenco intenso que entrega muito mais do que sustos: uma desconstrução dolorosa da história americana.
Racismo: O Monstro Que Bate à Porta
Em ELES: Covenant, a família Emory se muda do sul dos Estados Unidos para o bairro predominantemente branco de Compton, nos anos 1950. O que deveria ser a realização de um sonho rapidamente se transforma em um pesadelo: olhares hostis, ataques explícitos e uma vizinhança que faz questão de lembrar que eles não pertencem àquele espaço. O horror aqui não é apenas sobrenatural — ele pulsa nas ruas, nas paredes e nos gestos cotidianos de exclusão.
A série acerta ao tratar o racismo como um fenômeno onipresente que atravessa o psicológico e o espiritual, criando um ambiente sufocante onde nem a própria casa oferece abrigo. O bairro perfeito e as cercas brancas tornam-se gaiolas emocionais. É nesse cenário que os terrores diários se misturam a manifestações sobrenaturais, que parecem surgir da própria estrutura social adoecida.
Violência Gráfica e Limites Éticos
A narrativa de ELES não hesita em exibir cenas chocantes que testam os limites do espectador. O horror gráfico da série é brutal e proposital, buscando impactar com a mesma força que o racismo impacta na vida real. Essa escolha, no entanto, dividiu a crítica: para alguns, a violência parece necessária; para outros, soa como exploração desnecessária de sofrimento negro.
Esse debate sobre o “quanto é demais” é pertinente, especialmente quando o audiovisual aborda traumas históricos. A violência explícita pode ser uma ferramenta poderosa de denúncia, mas também pode correr o risco de desumanizar as vítimas ao transformá-las em meras peças narrativas. ELES transita perigosamente nesse fio de navalha.
Identidade Que Resiste
Enquanto Lucky e Henry Emory tentam proteger suas filhas, a luta não é apenas contra os ataques externos, mas contra as rachaduras internas que o trauma provoca. O horror psicológico é o verdadeiro antagonista: vozes, alucinações e desespero tornam-se armas silenciosas que corroem a esperança da família. O simples ato de permanecer é uma forma de resistência.
A série constrói com maestria o peso emocional de existir em um ambiente que quer apagá-los. A identidade negra, tão rica e potente, é desafiada a todo instante por forças que tentam fragmentá-la. Mesmo em meio ao terror, o vínculo familiar se revela um dos poucos espaços seguros — ainda que abalado.
Horror Como Ferramenta de Reflexão
ELES se alinha a uma nova geração de produções que utilizam o horror como linguagem para revisitar traumas sociais. Assim como Corra! (Get Out) e Nós (Us), a série insere no terror elementos históricos e estruturais que questionam privilégios, narrativas e silêncios. O medo não vem do desconhecido, mas do que já é sistemicamente conhecido e ignorado.
Ao confrontar o espectador com a face crua da violência racial, ELES não apenas assusta, mas convoca à reflexão. O horror aqui é pedagógico: obriga a enxergar o que muitos preferem não ver. Ao dar rosto e história às vítimas, a série rompe a distância emocional e posiciona o racismo não como passado, mas como presente contínuo.
Atuação e Construção Visual
Deborah Ayorinde e Ashley Thomas entregam interpretações vigorosas, com uma carga emocional que sustenta a série mesmo nos momentos mais extremos. Suas performances equilibram dor, força e vulnerabilidade, oferecendo humanidade a personagens que poderiam facilmente se perder em um roteiro focado apenas no impacto visual.
Além das atuações, a estética é um dos grandes trunfos da produção. A ambientação suburbana dos anos 1950, com suas cores suaves e casas padronizadas, cria um contraste eficaz com o terror latente. A direção, a fotografia e o design de produção constroem um espaço que é, ao mesmo tempo, belo e ameaçador — um lugar onde o sonho americano revela seu lado mais sombrio.
Entre o Real e o Sobrenatural
A primeira temporada foca no horror doméstico e social da década de 1950, enquanto a segunda expande a narrativa para os anos 1990, explorando novas formas de violência institucional, como o policiamento excessivo e a vigilância tecnológica. O que une as temporadas é a capacidade de explorar o racismo em múltiplas dimensões e épocas.
A fusão entre terror real e sobrenatural é o motor da série, revelando que, para aqueles que são historicamente oprimidos, as assombrações não precisam de fantasmas para serem assustadoras. Elas já habitam o tecido social, as leis, os bairros e as memórias. E quando o horror sobrenatural surge, ele parece apenas uma extensão de um sistema já adoecido.
