Desde sua estreia em 2012, Call the Midwife firmou-se como uma das séries mais comoventes e socialmente relevantes da televisão britânica. Criada por Heidi Thomas e baseada nas memórias da enfermeira Jennifer Worth, a obra mergulha na vida de parteiras e freiras do Nonnatus House, em Poplar, uma região operária do East End londrino entre os anos 1950 e 1970. Muito além dos partos, o que se revela é um profundo retrato de uma comunidade em transformação.
Uma medicina feita de escuta e coragem
A série começa em 1957, no auge do baby boom e da expansão do NHS (Serviço Nacional de Saúde). A protagonista Jenny Lee (vivida por Jessica Raine e, posteriormente, outras atrizes) chega ao convento Nonnatus para prestar cuidados obstétricos em um bairro marcado por pobreza, imigração e insalubridade.
Cada episódio é uma cápsula de histórias reais: partos em casas minúsculas, epidemias de sífilis, violência doméstica, dilemas sobre aborto e maternidade solo. Mas também há espaço para o riso, a fé e a força inabalável das mulheres que ali vivem e trabalham.
Saúde pública entre freiras, médicos e moradoras
As parteiras atuam como pontes entre o sistema e as pessoas, oferecendo cuidados com profissionalismo e empatia, mesmo em situações precárias. A série destaca a importância da atenção primária, do vínculo com o território e do respeito à cultura de cada paciente.
As freiras do convento (notadamente as irmãs Julienne, Evangelina e Monica Joan) representam o elo entre fé e prática, com diferentes interpretações da espiritualidade como forma de serviço. Em tempos de dor, elas não impõem dogmas: oferecem acolhimento e presença, inclusive nos momentos mais sombrios da existência humana.
De dramas íntimos a grandes temas sociais
Ao longo das temporadas, Call the Midwife expande seu escopo sem perder a intimidade: racismo institucional, mutilação genital feminina (FGM), homossexualidade criminalizada, violência obstétrica, adoções forçadas e exclusão de pessoas com deficiência são tratados com sensibilidade e honestidade.
Mesmo as histórias mais dolorosas são contadas sem estigmas e reconhecendo a complexidade de viver em tempos de mudança. Isso se reflete na transição do bairro, com a chegada da televisão, a luta pelos direitos civis e os impactos das guerras, da imigração e da revolução sexual.
Realismo com alma: estética e narrativa que tocam
A produção recria com primor os becos, fábricas e apartamentos do East End, usando locações reais e um figurino meticuloso que transporta o espectador no tempo. A trilha sonora emocional, composta por Peter Salem e Maurizio Malagnini, reforça o tom delicado das histórias, enquanto a narração da personagem Jenny (mais velha) costura episódios com reflexões íntimas e universais.
Call the Midwife não apela ao melodrama fácil. Seu poder está na dignidade com que trata os invisibilizados, mostrando que o cotidiano também é épico quando se trata de nascer, amar e cuidar.
Uma série sobre justiça, afeto e memória
Ao valorizar histórias reais de mulheres comuns, a série contribui para uma memória social de resistência e afeto. Enfermeiras, mães, religiosas, médicas e imigrantes formam um mosaico de força e solidariedade.
Essa abordagem encontra ressonância nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): especialmente nos temas de saúde e bem-estar (ODS 3), igualdade de gênero (ODS 5), redução das desigualdades (ODS 10) e instituições eficazes e pacificadoras (ODS 16). Ao retratar a atuação do sistema público, da igreja e da própria comunidade, a série debate formas possíveis de justiça e cuidado social.
Quando nascer é também resistir
Em última análise, Call the Midwife mostra que cada nascimento é um ato de esperança coletiva. E cada parto atendido por aquelas mulheres representa não só o início de uma vida, mas também a renovação de uma rede de solidariedade que sustenta bairros, famílias e culturas.
Com audiência sólida há mais de uma década e aclamação crítica constante, a série comprova que o que emociona o público não é o espetáculo, mas a verdade do afeto e da luta compartilhada. Em tempos tão marcados por polarizações e desamparo, talvez estejamos todos precisando de mais parteiras, que saibam, com mãos firmes e ouvidos atentos, ajudar o mundo a nascer de novo.
