O filme Ainda Estou Aqui (2024), dirigido por Walter Salles, resgata uma das histórias mais pungentes da resistência civil durante a ditadura militar no Brasil. Inspirado na trajetória de Eunice Paiva, o longa é um mergulho sensível nas marcas deixadas pelo desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, e na lenta deterioração de suas próprias memórias. Emoldurado por interpretações poderosas de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, o filme transcende a cinebiografia: é um monumento à luta pela verdade e ao direito de lembrar.
Ditadura e Memória: Ecos de um Brasil Silenciado
Ao reconstruir com riqueza de detalhes o Rio de Janeiro dos anos 70, Ainda Estou Aqui desenha um cenário opressor, onde a violência de Estado invade lares e silencia histórias. A prisão e o desaparecimento de Rubens Paiva dão início à jornada de Eunice como uma buscadora incansável da verdade. O filme expõe, sem didatismo, como a memória familiar se entrelaça à memória nacional, revelando feridas que ainda exigem cura.
Por meio de uma narrativa que transita entre o passado e o presente, o longa aborda a urgência de preservar as lembranças das vítimas da ditadura, enquanto questiona os apagamentos sistemáticos operados por regimes autoritários. A luta de Eunice torna-se também um convite à reflexão sobre como sociedades escolhem lembrar — ou esquecer — seus traumas coletivos.
Resiliência Feminina: De Dona de Casa a Ativista
Eunice Paiva é retratada como uma mulher que transforma a dor em ação. Após a perda do marido, ela rompe com o papel social que lhe era imposto, forma-se em Direito e dedica a vida à defesa de famílias de desaparecidos políticos. A performance de Fernanda Torres, que ganha ares de contemplação e fragilidade na pele da Eunice idosa vivida por Fernanda Montenegro, constrói um retrato multifacetado de coragem e vulnerabilidade.
A trajetória da personagem é também uma resposta ao peso histórico de um país que relegou às mulheres o papel de espectadoras. Eunice, ao contrário, escreve sua própria história, tornando-se referência de resiliência feminina, mesmo quando a doença lhe rouba, pouco a pouco, as memórias mais preciosas.
Trauma Intergeracional: O Legado que Ecoa nos Filhos
O filme dedica espaço valioso à relação entre Eunice e seus filhos — um elo que atravessa décadas e humaniza a luta política. O trauma do desaparecimento de Rubens Paiva reverbera nas gerações seguintes, afetando vínculos, escolhas e compreensões de mundo. A sensibilidade com que a direção trata essas relações evita estereótipos, oferecendo um olhar sincero sobre as marcas invisíveis que o luto não resolvido pode carregar.
Essa camada narrativa também conecta Ainda Estou Aqui aos debates contemporâneos sobre como os filhos e netos das vítimas da repressão herdam memórias e dores — mesmo quando não as viveram diretamente.
Memória e Esquecimento: O Corpo Como Campo de Batalha
A doença de Alzheimer que atinge Eunice no final da vida introduz uma dimensão simbólica poderosa: a memória, antes o maior instrumento de luta, torna-se frágil e escorregadia. O filme explora, com delicadeza, a tensão entre lembrar e esquecer, entre o que se pode preservar e o que inevitavelmente se dissolve no tempo.
A montagem de Affonso Gonçalves e a fotografia de Adrian Teijido potencializam essa dualidade, alternando entre registros quase documentais e atmosferas oníricas, criando uma experiência que é ao mesmo tempo política e profundamente humana.
Impacto Cultural: Uma História Que Se Recusa a Ser Esquecida
Ainda Estou Aqui se consolida como um dos marcos do cinema nacional contemporâneo, ao lado de obras que buscam resgatar memórias silenciadas. Seu sucesso internacional, incluindo a vitória no Oscar de Melhor Filme Internacional, reforça a importância de narrativas que confrontam a amnésia social e celebram figuras femininas que se tornaram pilares da democracia.
Além disso, o longa se insere no contexto atual de revalorização do direito à memória, ao questionar com sensibilidade as cicatrizes ainda abertas no tecido histórico do Brasil. Um lembrete necessário de que o passado, quando esquecido, pode se repetir.
