Em Yomeddine – Em Busca de um Lar (2018), o Egito profundo é palco de uma travessia comovente entre dois excluídos: um homem marcado pela lepra e um menino abandonado. A estrada que percorrem não é só geográfica, mas simbólica — feita de rejeições, descobertas e reencontros. A cada parada, o filme questiona o que realmente define um lar e quem merece pertencer.
Rostos esquecidos, humanidade à flor da pele
Beshay (Rady Gamal) vive em uma colônia de leprosos desde a infância. Embora curado, seu corpo carrega as cicatrizes da doença, e seu rosto, a memória do abandono. Após a morte da esposa, ele decide deixar a colônia e partir em busca de sua família biológica. Sem avisar, o pequeno Obama — garoto órfão que vive no mesmo local — junta-se à viagem, formando uma dupla improvável.
A relação entre os dois é o coração do filme: afeto que brota entre ruínas, cumplicidade diante do descaso. O diretor Abu Bakr Shawky filma com a delicadeza dos grandes humanistas, transformando cada gesto em denúncia silenciosa contra a exclusão social. Os atores não profissionais, especialmente Gamal, emprestam ao filme uma verdade que dispensa maquiagem e piedade.
A estrada como espaço de julgamento
Yomeddine (que significa “Dia do Julgamento”, em referência ao juízo final islâmico) é, em si, uma metáfora sobre dignidade e julgamento. Ao longo da jornada, Beshay e Obama cruzam lixões, desertos, estradas e vilarejos — cenários áridos que refletem a indiferença institucional. São barrados por preconceito, mas também acolhidos por gestos solidários de gente comum: um vendedor, um caminhoneiro, um grupo de ciganos.
Essas interações revelam uma geografia da exclusão onde o pertencimento social depende da aparência, da saúde e do status. Beshay é olhado com desconfiança por causa do rosto deformado, mas é ele quem, com sua integridade silenciosa, oferece humanidade a quem encontra.
Uma busca por raízes e sentido
O reencontro de Beshay com familiares traz decepção e realismo: ele descobre que foi abandonado não por necessidade, mas por vergonha. A ruptura familiar não é resolvida com um abraço, mas com a consciência do próprio valor. O filme evita a catarse fácil e opta por um desfecho sóbrio — não de resolução plena, mas de reconciliação com a própria história.
Ao retornar à colônia, Beshay já não volta como o mesmo homem. A viagem não lhe deu o lar que procurava, mas lhe devolveu algo mais profundo: a consciência de que ele é maior que o rótulo que recebeu. Ao seu lado, Obama se transforma de espectador em herdeiro de uma nova esperança.
Cinema que acolhe, denuncia e emociona
Com fotografia naturalista e uma trilha sonora discreta, Yomeddine constrói uma linguagem que respeita seus personagens. A câmera acompanha os corpos com ternura, sem glamourizar a miséria ou estetizar o sofrimento. O resultado é um filme que emociona sem apelar — e que propõe uma denúncia sem raiva, mas com profunda compaixão.
A escolha por atores não profissionais amplia esse realismo. Rady Gamal, ele próprio sobrevivente da lepra, empresta ao papel algo que nenhum ator técnico conseguiria: a autenticidade da dor e a serenidade de quem viveu à margem e, ainda assim, caminha com dignidade.
Um lembrete urgente sobre exclusão e pertencimento
Yomeddine é uma fábula sem fantasia. Sua força está em mostrar que os marginalizados não buscam piedade, mas reconhecimento. No olhar de Obama e no silêncio de Beshay, emerge uma lição que atravessa idiomas e fronteiras: o ser humano não pode ser reduzido à sua doença, sua origem ou sua aparência.
Em tempos de muros e julgamentos apressados, o filme oferece um contraponto raro — o de uma jornada que não pede redenção, mas pertencimento. Porque, no fim, como sugere o título, todos seremos julgados não pelo que temos ou mostramos, mas pelo que somos.
