Dirigido por Ava DuVernay, Selma – Uma Luta pela Igualdade vai além da cinebiografia convencional. Ao reconstituir os eventos que culminaram na marcha de Selma a Montgomery, em 1965, o filme ilumina não apenas um capítulo decisivo dos direitos civis nos Estados Unidos, mas também o poder da resistência coletiva, da mídia como aliada da verdade e do cinema como ferramenta de memória viva.
Caminhar com coragem, mesmo com medo
Selma abre mão de uma visão mitificada de Martin Luther King Jr. para apresentar o homem por trás do ícone. Interpretado com precisão por David Oyelowo, King aparece como um líder movido por convicção, mas também assombrado por dúvidas e dilemas morais. A marcha que organiza não é um gesto simples, mas uma ação estratégica pensada para confrontar um sistema que exclui milhões do direito ao voto.
A coragem dos manifestantes, muitos deles anônimos, é retratada com uma sensibilidade que não romantiza o sacrifício. O filme mostra como o medo é constante, mas não suficiente para paralisar. Pessoas comuns — jovens, mulheres, religiosos, trabalhadores — enfrentam ameaças reais com a força de quem sabe que justiça é mais do que um ideal: é uma urgência.
Uma marcha contra as instituições que falham
Ao denunciar a violência policial e a negligência institucional, Selma aponta o racismo como estrutura, não como desvio. A brutal repressão no episódio conhecido como “Bloody Sunday” — televisionado para o país inteiro — funciona como ponto de virada, escancarando ao mundo a brutalidade sistemática contra os manifestantes.
A narrativa revela a tensão entre o ativismo e o poder político. Enquanto King pressiona o presidente Lyndon B. Johnson, o filme questiona até que ponto as instituições são capazes de se transformar sem o confronto direto com a realidade das ruas. Nesse sentido, Selma lança um olhar contundente sobre a lentidão — ou resistência — do sistema em responder às demandas de justiça.
Uma estética que honra a luta
Com fotografia quente e direção precisa, Ava DuVernay confere ao filme um tom quase litúrgico. As cenas são marcadas por planos contemplativos e por momentos de silêncio que dizem muito mais do que gritos. A trilha sonora — em especial a canção “Glory”, de John Legend e Common — reforça a dimensão simbólica da luta.
A diretora opta por uma linguagem que equilibra emoção e política. Não há espetacularização da dor, mas há respeito por sua presença. As cenas de violência são impactantes, mas o foco está sempre nos rostos — no olhar de quem marcha, na lágrima de quem espera, na fúria de quem resiste. É uma escolha estética que reafirma o protagonismo da experiência humana.
Muito além de um único homem
Ao evitar a armadilha do “herói solitário”, DuVernay constrói uma narrativa que valoriza a coletividade. Líderes locais, jovens militantes e até mesmo integrantes hesitantes da Igreja participam da caminhada por justiça. O protagonismo é compartilhado, como deve ser em toda luta por transformação social.
Essa escolha narrativa amplia o impacto político do filme. Em vez de centralizar a esperança em um nome, Selma propõe a ação como tarefa coletiva. A marcha não pertence apenas a King — pertence a todos os que caminham, os que caem e os que continuam. É uma ode à força do grupo frente ao silêncio institucional.
Da Selma histórica à urgência contemporânea
Lançado em 2014, Selma dialoga diretamente com os protestos contemporâneos por igualdade racial, como os movimentos associados ao Black Lives Matter. Ao revisitar os anos 1960, o filme propõe paralelos que não precisam ser forçados: a brutalidade policial, a exclusão política, a manipulação das leis continuam presentes — mudam as faces, mas não os mecanismos.
Nesse contexto, a obra se posiciona como ferramenta educativa e ativista. Usada em escolas, discussões públicas e cineclubes, ela amplia o debate sobre cidadania, justiça e o papel da resistência pacífica. Selma não é um fim, é um símbolo de que a caminhada por equidade ainda está em curso — e exige que sigamos atentos e mobilizados.
