Duas décadas depois de um dos maiores fracassos documentados da história do cinema, Terry Gilliam voltou ao campo de batalha. Em “He Dreams of Giants”, dirigido por Keith Fulton e Louis Pepe, o ex-Monty Python e diretor de Brazil e 12 Monkeys encara o peso do tempo e o espelho de sua própria obstinação. O documentário, que completa a trilogia iniciada com The Hamster Factor e Lost in La Mancha, não é apenas o registro de uma filmagem difícil — é o retrato de um artista em guerra com o tempo, a sanidade e o próprio legado.
Enquanto o set de The Man Who Killed Don Quixote ganha forma entre crises e improvisos, Gilliam, agora idoso, observa-se diante das ruínas e das vitórias do passado. Sua luta vai além da câmera: é a busca por sentido quando a realidade insiste em esfarelar o sonho.
O preço da obstinação
Terry Gilliam parece não dirigir um filme, mas travar um duelo contra a própria biografia. Em cada frame, há o eco de um idealista tentando transformar delírio em matéria. “É sobre a loucura de não desistir, mesmo quando desistir seria mais fácil”, diz uma das frases que definem o tom do documentário. A frase, dita com exaustão e ironia, traduz um dilema comum a toda jornada criativa: até que ponto a persistência é virtude — e quando passa a ser uma forma de autodestruição?
Essa tensão dá forma ao coração do filme. Gilliam é simultaneamente Dom Quixote e Sancho Pança, oscilando entre o sonho impossível e a fadiga de quem já viu demais. Fulton e Pepe, que o acompanharam desde os anos 1990, registram não apenas um processo cinematográfico, mas o desmoronar silencioso de um homem que viveu para filmar — e talvez filmou para continuar vivo.
Arte, tempo e a teimosia de existir
“He Dreams of Giants” se apresenta como um diário visual da passagem do tempo. A montagem alterna cenas antigas de Lost in La Mancha com as novas filmagens, criando uma espiral temporal que mistura memória e presente. O espectador sente o peso dos vinte anos — e entende que, para Gilliam, o tempo é o verdadeiro vilão.
Mas há beleza nessa decadência. O filme transforma o envelhecimento em matéria poética: a rugosidade do rosto do diretor, o cansaço nos olhos, o descompasso entre o que se imagina e o que se consegue. É uma homenagem involuntária à resistência criativa — aquela que não produz lucro, nem glória, mas produz humanidade.
O trabalho como fé
No fundo, o que o documentário mostra é o valor invisível do trabalho. Fazer cinema, para Gilliam, não é glamour: é sobrevivência. Ele lida com orçamentos apertados, condições precárias e o peso da indústria que já não acolhe visionários. Mesmo assim, insiste. Essa insistência, quase tola, carrega uma força que ecoa além das telas — a de quem acredita que criar é um ato moral.
O filme humaniza a ideia de “trabalho decente” ao mostrar o desgaste mental, o esforço coletivo e o desequilíbrio emocional por trás de um sonho artístico. A equipe técnica, muitas vezes invisível, aparece como espinha dorsal da utopia. Não há heróis; há apenas pessoas tentando fazer algo belo, mesmo quando tudo parece conspirar contra.
Legado e mortalidade
“He Dreams of Giants” é, em última instância, uma elegia. Gilliam encara a morte do mito de frente — e ri dela. O documentário o mostra hesitante, vulnerável, mas ainda incendiado pela mesma centelha que o moveu décadas atrás. O sonho, percebe-se, não envelhece: apenas muda de corpo.
A câmera de Fulton e Pepe registra um homem reconciliando-se com seus limites. O caos que antes o devorava agora se torna confissão. Nesse sentido, o filme não fala apenas sobre cinema, mas sobre o que resta de nós quando o tempo cobra o preço da fé. É o artista lutando não para vencer, mas para continuar sonhando — e isso, talvez, seja o verdadeiro heroísmo.
Entre a criação e o colapso
A força de He Dreams of Giants está em revelar o humano por trás do mito. Não há grandes discursos, nem catarse. Há silêncio, ironia, fragilidade. Ao final, o espectador entende que o filme nunca foi sobre Dom Quixote, nem sobre Gilliam — mas sobre todos que insistem em construir sentido em um mundo que parece ter desistido dele.
Como diria o próprio documentário, “alguns sonham com o impossível. Outros passam a vida tentando filmá-lo”. Entre o sonho e o fracasso, Terry Gilliam encontrou um terceiro caminho: o de continuar tentando. E, nesse gesto, deixou um retrato sincero daquilo que nos torna humanos.
