Há filmes que nos contam uma história. Outros, que nos fazem sentir algo. O Cavalo de Turim (A torinói ló, 2011), de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, vai além: ele dissolve o tempo diante de nossos olhos. É uma obra onde quase nada acontece e ainda assim, tudo desaba. A partir de um acontecimento quase mítico, o colapso mental de Friedrich Nietzsche após abraçar um cavalo em Turim — o filme constrói uma meditação radical sobre o esgotamento da vida, da linguagem e da esperança.
O som do vento como apocalipse
Logo nos primeiros minutos, a câmera acompanha, em um plano longo e coreografado, o cavalo puxando uma carroça em meio a um vendaval. O vento, elemento sonoro que atravessa todo o filme, não é apenas uma condição climática: é a presença do fim, uma entidade invisível que sopra sem pausa, corroendo o que resta. A paisagem é árida. A casa, isolada. O tempo, suspenso.
A partir desse início assombroso, mergulhamos na rotina de um pai e sua filha que vivem numa casa rural, remanescente de um mundo que parece prestes a desaparecer. Vestir-se. Comer batatas. Buscar água no poço. Vestir-se. Comer batatas. Buscar água no poço. A repetição não é tédio: é liturgia do fim.
Béla Tarr filma o esvaziamento
Com apenas 30 planos em 146 minutos, Tarr constrói um cinema da lentidão extrema, mas não por capricho, e sim por coerência. Sua linguagem fílmica é uma crítica à pressa moderna, ao excesso de informação, à ilusão de sentido. Cada movimento de câmera é uma coreografia do desmoronamento. Cada gesto dos personagens é carregado de peso existencial. O preto e branco da fotografia de Fred Kelemen retira qualquer sedução estética: o que sobra é o cru, o seco, o duro.
Não há redenção. Não há reviravolta. Quando o cavalo deixa de se mover, quando o poço seca, quando a comida escasseia e a luz simplesmente se apaga, o mundo termina sem alarde. Tarr parece afirmar: o apocalipse não será um espetáculo. Ele será lento, repetitivo e silencioso, como a vida que ignoramos.
Filosofia sem palavras
Há ecos filosóficos profundos ao longo do filme. Nietzsche está presente desde a cena inicial, mas sua influência não é doutrinária: ela é sensorial. A ideia de um mundo sem Deus, sem destino, sem explicação, um niilismo atmosférico que embala cada quadro. E ainda assim, o filme nunca é pedante. Ele apenas mostra. E exige que o espectador aguente o tempo, o vazio e o silêncio, quase como um ritual de resistência interior.
Para poucos
O Cavalo de Turim não é um filme acessível. Muitos o acharão insuportável. E isso é parte de sua função. Tarr nunca quis fazer entretenimento, mas sim confrontar o olhar. Quando anunciou que essa seria sua última obra, ele parecia dizer: “é isso que tenho a dizer, e nada mais”.
O que ele nos deixa é um testamento sobre a precariedade do mundo e da linguagem. Uma fábula sem metáforas, onde o real e o simbólico colapsam juntos. Uma narrativa que recusa finais felizes, mas oferece uma estranha forma de clareza.
O fim, enfim
No último dia da narrativa, a luz não acende. A filha tenta acender o lampião. O pai ordena que ela tente de novo. Nada. Só o escuro. E o silêncio. O mundo acabou. Não com uma explosão, mas com uma recusa. A recusa da própria existência em continuar.
