Em uma época marcada por teorias conspiratórias e desinformação, Negação (2016) dramatiza um caso judicial emblemático: Deborah Lipstadt, historiadora e especialista no Holocausto, é processada por difamação por chamar o autor David Irving de negacionista. Cabe a ela — e não ao acusador — provar que o Holocausto de fato ocorreu. O que está em jogo? O próprio conceito de verdade histórica.
Quando dizer a verdade se torna um risco
No sistema jurídico britânico, o ônus da prova em casos de difamação recai sobre quem é acusado — e é justamente essa inversão que torna o caso Irving vs Penguin Books um símbolo de nossa era. Em Negação, dirigido por Mick Jackson e roteirizado por David Hare, vemos a história real de como Deborah Lipstadt (vivida por Rachel Weisz) precisou demonstrar, em tribunal, que o Holocausto ocorreu — um fato histórico que, até então, parecia incontestável.
Mas o filme não se apoia apenas na indignação. Ele constrói, com sobriedade e rigor, o caminho tortuoso que leva da acusação à sentença. O espectador acompanha a estratégia da defesa, que opta por não colocar sobreviventes no banco das testemunhas, mas sim desconstruir academicamente — com provas, documentos e testemunhos técnicos — as manipulações e distorções promovidas por Irving (interpretado com frieza por Timothy Spall).
Verdade histórica x liberdade de expressão?
A força do filme está em sua capacidade de traduzir, sem didatismo, dilemas contemporâneos que vão além da história do Holocausto. Negação questiona até que ponto a liberdade de expressão pode (ou deve) proteger quem distorce os fatos — e mostra o quão frágil pode ser a linha entre opinião e falsificação deliberada.
O roteiro enfatiza o embate entre dois mundos: o da cultura do testemunho, que carrega os traumas de Auschwitz e a responsabilidade de lembrar, e o do revisionismo, que se disfarça de ceticismo intelectual para promover agendas ideológicas perigosas. Em tempos de “pós-verdade”, o filme se torna mais do que um drama de tribunal: é um alerta.
Uma luta pelo passado — e pelo futuro
Esteticamente contido, o longa aposta em uma direção sóbria e em atuações densas para conduzir o espectador por um território árido, porém urgente. A visita silenciosa a Auschwitz, conduzida por Lipstadt e seus advogados, é uma das cenas mais potentes da obra: sem falas, sem trilha sonora — apenas as ruínas como testemunhas.
Rachel Weisz entrega uma atuação firme e emocionalmente contida, refletindo a postura estratégica exigida da personagem. O elenco de apoio, com Tom Wilkinson e Andrew Scott, fortalece a narrativa com precisão e equilíbrio, enquanto Spall transforma Irving em um símbolo da arrogância travestida de liberdade.
Repercussão e relevância
Embora sua bilheteria tenha sido modesta (US$ 9 milhões para um orçamento de 10), Negação foi bem recebido pela crítica, com 82% de aprovação no Rotten Tomatoes. A produção não busca sensacionalismo, mas sim relevância — e talvez por isso tenha conquistado reconhecimento como ferramenta educativa e política.
Lançado em 2016, o filme ressoa de forma ainda mais intensa no presente, ao refletir sobre o papel da história, da memória e do combate à desinformação em uma era digital marcada por negacionismos diversos — da ciência ao jornalismo.
