Enquanto o diretor iraniano Jafar Panahi aguardava julgamento e vivia sob interdição profissional, ele encontrou no próprio confinamento a matéria-prima de um gesto radical: filmar o que não podia ser filmado.
Isto Não é um Filme (2011) nasce da contradição entre censura e criação — e transforma a ausência de liberdade em um retrato íntimo sobre a persistência da arte diante da repressão.
A arte como forma de desobediência
O documentário se passa inteiramente dentro do apartamento de Panahi, em Teerã, onde o diretor, proibido de trabalhar, decide registrar o cotidiano enquanto reflete sobre a impossibilidade de filmar. O que começa como um diário doméstico se transforma em uma experiência cinematográfica singular — uma narrativa feita de fragmentos, silêncios e ironia.
Sem roteiros, sem equipe e com recursos mínimos, Panahi demonstra que a essência do cinema não está no aparato técnico, mas no olhar. Cada plano improvisado revela a urgência de criar, mesmo quando o ato de criação é considerado crime.
Essa resistência íntima, capturada por uma câmera digital e um iPhone, ecoa a ideia de que a arte sobrevive ao poder. O gesto de filmar, por si só, torna-se um protesto silencioso contra a censura. Panahi, ao representar a si mesmo, não apenas documenta sua clausura — ele redefine o próprio conceito de liberdade artística.
O cotidiano como mise-en-scène da liberdade
Em vez de dramatizar sua situação, Panahi transforma a rotina em metáfora. A televisão ligada, o som das ruas, os telefonemas que interrompem o silêncio: tudo compõe um cenário de tensão e resistência. É um filme sem enredo, mas com propósito; uma narrativa sobre a presença do artista diante da ausência de poder.
Há uma delicadeza quase poética em observar como gestos simples — desenhar um cenário no chão, observar o gato andando pela casa — se convertem em símbolos da necessidade humana de expressar-se.
Essa estética minimalista amplia o peso do não dito. Em Isto Não é um Filme, o silêncio é discurso, e o enquadramento é ato político. Panahi mostra que filmar o invisível é também filmar a verdade — aquela que o regime tenta apagar.
Metacinema e o espelho do absurdo
O título, deliberadamente provocativo, ironiza a própria condição do cineasta: ao afirmar que “isto não é um filme”, Panahi expõe a hipocrisia da proibição. A linguagem se torna sua arma — e o cinema, um espelho do absurdo burocrático que tenta delimitar o que pode ou não existir.
A narrativa, entre o documental e o performático, convida o público a repensar o papel do artista como cidadão. Até onde vai o dever ético da criação? O que acontece quando o Estado tenta confiscar a imaginação?
Em meio a esse paradoxo, o filme reafirma o poder da arte como testemunho. Panahi não fala apenas por si, mas por todos os que têm suas vozes silenciadas — jornalistas, escritores, músicos, mulheres e dissidentes que encontram na expressão estética uma forma de sobrevivência.
Quando a câmera é uma arma simbólica
Isto Não é um Filme foi gravado clandestinamente e contrabandeado em um pen drive escondido dentro de um bolo até o Festival de Cannes. O gesto, ao mesmo tempo poético e político, tornou-se um dos episódios mais emblemáticos da história recente do cinema.
A obra transcende fronteiras, lembrando que a liberdade de expressão não é um privilégio, mas um direito constantemente ameaçado. Panahi mostra que o cinema ainda pode ser um espaço de insubmissão — uma forma de dizer “eu existo” em meio à tentativa de apagamento.
Mais do que um protesto, o filme é uma lição de dignidade criativa. Ao transformar o confinamento em cenário e o silêncio em linguagem, Panahi revela que o verdadeiro cinema não precisa de permissão — apenas de coragem.
