Inspirado nas memórias da mãe do diretor Denis Do, Funan (2018) é uma animação comovente que transporta o espectador para um dos capítulos mais sombrios da história recente. Entre fome, violência e separação, Chou — protagonista e mãe — se recusa a deixar que a dor apague o amor e a dignidade. Uma história sobre como, mesmo em tempos de opressão extrema, a esperança pode ser um ato de resistência.
O horror retratado com delicadeza
Denis Do opta por uma animação 2D de traços claros, inspirada na ligne claire, para contar uma história profundamente trágica. Essa escolha estética cria um contraste que intensifica o impacto emocional: a beleza das imagens ressalta o absurdo e a brutalidade da violência.
Ao não mostrar a violência de forma explícita, o diretor convida o espectador a sentir o peso do trauma sem ser afastado pelo choque gráfico. Os atos mais cruéis acontecem fora de quadro, mas suas consequências reverberam em cada olhar, silêncio e gesto dos personagens.
Uma maternidade à prova do medo
No centro da narrativa está a busca de Chou por seu filho Sovanh, de quem é separada logo no início do regime. O filme acompanha essa trajetória como uma espécie de peregrinação moral e emocional, onde a maternidade não é apenas um vínculo afetivo, mas um motor de sobrevivência.
O amor, aqui, não é um conceito abstrato: é persistir diante da fome, é desafiar ordens implícitas, é manter viva a lembrança de um rosto para não se render ao esquecimento. Funan mostra que, em tempos de guerra, a maternidade pode se tornar um ato político e de resistência silenciosa.
O peso da memória histórica
Mais do que narrar um drama individual, o filme participa de um esforço coletivo de preservação da memória sobre o regime do Khmer Vermelho. Ao trazer para o cinema as vozes daqueles que sobreviveram, Denis Do combate o apagamento e transforma a arte em um espaço de educação e reflexão histórica.
Essa dimensão memorialista se torna ainda mais relevante por vir de um formato animado, acessível e sensível, capaz de alcançar públicos que talvez nunca se aproximassem dessa história por meio de um documentário tradicional ou um livro acadêmico.
Um legado que dialoga com o presente
Ao vencer prêmios como o Cristal de Melhor Longa-Metragem em Annecy, Funan provou que a animação não é um gênero limitado a fantasias ou narrativas infantis. Pelo contrário, pode carregar uma força política e emocional comparável a filmes como Persepolis ou Túmulo dos Vagalumes.
No mundo atual, onde a violência política e os deslocamentos forçados continuam a moldar milhões de vidas, a história de Chou permanece urgente. Ela nos lembra que reconstruir o futuro passa por contar — e recontar — as histórias do passado, antes que elas se percam no silêncio.
