Boy Erased – Uma Verdade Anulada é mais do que um relato pessoal: é uma denúncia corajosa sobre um tipo de violência que persiste de forma velada. Adaptado da autobiografia de Garrard Conley, o filme acompanha Jared, um jovem obrigado pela família a se submeter a uma “cura gay”. Em cenas que alternam contenção e intensidade emocional, a obra expõe os danos profundos da conversão forçada e pergunta: o amor, quando tenta moldar, ainda é amor?
O preço de negar quem se é
Jared é o filho de um pastor batista em uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos. Quando sua sexualidade vem à tona, os pais optam por enviá-lo a um centro de “reorientação sexual” dirigido por um líder religioso interpretado por Joel Edgerton, também diretor do longa. Nesse espaço, sob a promessa de salvação espiritual, jovens são submetidos a práticas humilhantes que tentam reprimir sua identidade. O drama pessoal torna-se coletivo: cada sessão é um ataque psicológico, cada silêncio um trauma em formação.
A força do filme reside na sua contenção. A fotografia em tons frios, os silêncios densos e os closes invasivos constroem um ambiente que reflete o desamparo emocional dos personagens. Lucas Hedges entrega uma atuação delicada, cheia de nuances, enquanto Nicole Kidman e Russell Crowe, como os pais divididos entre dogma e afeto, revelam as contradições dolorosas da fé que julga.
Fé, culpa e silêncio: o labirinto emocional da terapia de conversão
Mais do que retratar abusos, Boy Erased confronta a dissonância entre a crença religiosa e a verdade íntima. A narrativa não demoniza a fé, mas a interroga: o que acontece quando ela serve mais à repressão do que ao acolhimento? A terapia de conversão, tratada no filme como forma institucionalizada de tortura emocional, é desmascarada por meio do cotidiano: orações forçadas, gritos abafados, dinâmicas que humilham e expõem jovens já vulneráveis.
O filme não se contenta em denunciar — ele propõe uma reconstrução. Após romper com o programa, Jared inicia um processo lento de reconciliação consigo mesmo e com os pais. A partir da dor, surge a força de tornar-se voz pública: Garrard, o autor real da história, tornou-se ativista contra terapias de conversão e defensor dos direitos LGBTQIA+. O arco do personagem reflete esse percurso: da submissão à resistência, da culpa à liberdade.
A dor como denúncia: quando a arte vira política
Embora ambientado nos EUA da década de 2010, Boy Erased dialoga diretamente com contextos globais onde práticas de conversão ainda são legitimadas, muitas vezes sob pretexto religioso ou terapêutico. Ao adaptar uma autobiografia, o filme amplia o debate sobre a legalidade e os efeitos psicológicos desse tipo de “tratamento”, especialmente entre jovens. Com sensibilidade, Joel Edgerton consegue converter o testemunho em cinema ético — sem exploração, mas com contundência.
Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do GLAAD Media Award, o longa foi lançado no Brasil em plataformas digitais, num momento em que o país também discutia projetos de lei contra a criminalização da homofobia e os limites da liberdade religiosa. Nesse sentido, o filme se torna ferramenta de formação e de debate público — sua existência já é uma forma de resistência.
A verdade liberta, mesmo quando dói
No fim, Boy Erased é uma história sobre o direito de existir. Sua beleza está em reconhecer que a aceitação não nasce do choque, mas da escuta. Que o amor familiar pode errar, pode ferir, mas também pode aprender. E que a verdade — ainda que anulada temporariamente — encontra caminhos para florescer. Em tempos de retrocessos e fundamentalismos, o filme serve como lembrete: nenhuma identidade é doença, nenhum amor precisa ser curado.
