“O futuro chegou — mas para quem ele realmente serve?” A pergunta ecoa no silêncio de Ascension (2021), documentário dirigido por Jessica Kingdon que transforma o cotidiano da China contemporânea em um espelho global. Por meio de imagens meticulosamente compostas, a diretora observa o país que simboliza o novo poder econômico mundial, revelando a engrenagem por trás da promessa de progresso. O resultado é uma experiência visual tão hipnótica quanto incômoda — uma meditação sobre o que significa “subir” em um sistema onde poucos realmente chegam ao topo.
A máquina do crescimento
Ascension começa nas fábricas. Máquinas giram, braços se movem em sincronia, linhas de montagem funcionam como coreografias industriais. Os rostos são anônimos, o ritmo é constante, e o som das engrenagens substitui qualquer narração. Kingdon transforma o trabalho repetitivo em espetáculo visual, deixando o espectador se perder entre a precisão e a monotonia.
Essa primeira camada do documentário expõe o alicerce da nova economia: milhões de trabalhadores que produzem os objetos do desejo global. A produtividade é retratada como virtude e prisão. O corpo humano se torna extensão da máquina, e a vida se reduz a movimento, sem pausa, sem ar. É o retrato de uma sociedade que fabrica o futuro, mas pouco participa dele.
A pedagogia da ambição
Do chão de fábrica, a narrativa sobe — literalmente. Em salas de treinamento corporativo, jovens aprendem a “sorrir com propósito”, “vender com paixão” e “vencer com disciplina”. Os slogans são recitados como mantras de prosperidade, num ritual que mistura autoajuda, patriotismo e cultura empresarial.
Kingdon filma essas cenas com um olhar distante, quase antropológico. Não há ironia, mas há desconforto. O entusiasmo ensaiado desses treinamentos revela uma forma moderna de fé: acreditar que o sucesso é possível, desde que se siga o script. O documentário nos lembra que a ambição é o combustível que move a engrenagem — e também o que a consome por dentro.
O topo e o vazio
A terceira parte de Ascension nos leva às elites: piscinas de hotéis, rooftops luxuosos, cursos de etiqueta para milionários e exposições de robôs. A estética muda, mas a sensação permanece — tudo parece cuidadosamente coreografado, como se o luxo também fosse um tipo de fábrica.
Kingdon mostra que, enquanto uns fabricam sonhos, outros os compram prontos. Mas mesmo entre os que “ascenderam”, há algo ausente: uma frieza, um distanciamento quase clínico. A diretora não aponta culpados, apenas captura o paradoxo — a promessa de abundância que se alimenta da ausência de sentido.
Um espelho do capitalismo global
Embora filmado na China, Ascension reflete um fenômeno universal. O documentário não fala apenas sobre um país, mas sobre um sistema. A busca incessante por crescimento, eficiência e status não pertence a uma nação, e sim a uma era.
Kingdon desmonta a ilusão de que progresso e bem-estar caminham juntos. Ao colocar a câmera entre o trabalhador e o produto final, ela revela o abismo invisível que separa quem produz de quem consome. O filme é uma crítica silenciosa ao modo de vida global — aquele em que o sucesso virou mercadoria e o ser humano, parte da linha de montagem.
A estética do silêncio
O que torna Ascension tão poderoso é sua recusa em explicar. Sem narração ou entrevistas, o espectador é forçado a preencher os vazios. Cada plano fixo é um convite à observação; cada som ambiente, um lembrete de que há vida por trás das estatísticas.
A fotografia geométrica e a montagem gradual criam uma sensação hipnótica, quase meditativa. É cinema que pensa através da imagem. Em vez de indignação, há contemplação. Em vez de conclusões, há perguntas — e é nelas que o filme encontra sua força política.
A escada sem fim
Ascension encerra sua jornada onde começou: entre pessoas e máquinas, entre desejo e exaustão. O título, que remete à ideia de ascensão social e espiritual, ganha um tom irônico — como se o progresso fosse uma escada infinita, onde todos sobem, mas ninguém chega.
O documentário nos convida a repensar o custo do avanço. O que perdemos ao tentar conquistar o topo? Em uma era em que o trabalho é substituído por algoritmos e o sucesso virou performance, Ascension soa como um lembrete silencioso: crescer não é o mesmo que evoluir.
