Em Armadilha, o que começa como um programa inocente entre pai e filha se transforma em um jogo de máscaras, sangue e vigilância. M. Night Shyamalan abandona o sobrenatural para explorar o mal cotidiano — o que se esconde atrás de um sorriso familiar. Josh Hartnett interpreta Cooper, um homem dividido entre o amor paternal e sua identidade sombria, enquanto o público, preso com ele, tenta descobrir: quem realmente está em perigo?
Um thriller onde o palco é a armadilha
O show pop, com luzes pulsantes e euforia coletiva, esconde uma operação policial meticulosa: capturar um serial killer em meio ao público, sem alertá-lo. O palco vira isca, a plateia, escudo, e o espetáculo, uma armadilha. Cooper leva sua filha para curtir a atração, mas logo o espectador descobre que ele não é um pai qualquer — é o próprio “Açougueiro”, criminoso procurado.
A genialidade de Armadilha está em usar o cenário de entretenimento para tensionar o absurdo. O público dentro do filme vibra com as músicas enquanto o verdadeiro espetáculo é o cerco invisível ao assassino. O suspense cresce a partir do contraste entre a histeria coletiva do show e a tensão íntima da fuga iminente. Shyamalan brinca com as expectativas ao criar um universo onde a realidade é distorcida pelo ambiente pop — e ninguém percebe o horror que pulsa no centro do palco.
Cooper: entre a paternidade e a psicopatia
Josh Hartnett entrega uma das performances mais ambíguas de sua carreira. Como Cooper, ele alterna com fluidez entre a figura protetora e o olhar calculista, construindo um vilão que não é monstruoso aos olhos, mas à medida que a história avança. A tensão não está apenas em ser descoberto — mas em manter intacta a ilusão para a filha, que vê no pai o herói silencioso da noite.
Essa dualidade é o motor do filme. Cooper não é apenas um assassino em fuga; ele é um homem que parece sinceramente querer proteger a filha do caos que ele mesmo causou. Há um jogo psicológico cruel em andamento: o público é levado a sentir empatia, repulsa e confusão. Afinal, como julgar alguém que, ao mesmo tempo, salva e destrói? Armadilha não responde — apenas mostra que, muitas vezes, o terror é tão íntimo quanto silencioso.
Suspense com humor: uma sátira da cultura pop
Embora o tema seja sombrio, o tom do filme surpreende pela leveza cínica. Em várias cenas, o humor brota do desconforto, como quando Cooper tenta comprar um refrigerante com a filha enquanto a polícia o caça pelos corredores. O riso vem de situações absurdas e desconexas, lembrando que o horror nem sempre vem com música de tensão — às vezes, ele surge com trilha teen ao fundo.
Shyamalan aposta em uma estética maneirista e quase teatral: os enquadramentos exagerados, os cortes abruptos e o uso de espelhos e reflexos reforçam a ideia de duplicidade constante. O uso do “split-diopter”, por exemplo, mantém dois planos focados simultaneamente, simbolizando a divisão moral do protagonista. A forma é tão estranha quanto o conteúdo — e isso é proposital. Aqui, a linguagem do filme imita a mente do vilão: fragmentada, cínica, calculada.
Realidade e ficção se embaralham
Inspirado vagamente na Operação Flagship (1985), quando autoridades americanas prenderam criminosos ao atraí-los para um evento falso, Armadilha atualiza esse conceito para os tempos da cultura do espetáculo. A polícia, ao transformar um show em armadilha, revela que também sabe performar. Mas até que ponto se pode manipular o espaço público em nome da segurança?
A crítica que Shyamalan embute é sutil, mas certeira: vivemos em um mundo onde a vigilância se confunde com entretenimento, e onde a justiça parece flertar perigosamente com o espetáculo. Se, para capturar um criminoso, é preciso colocá-lo diante de câmeras e luzes, o que isso diz sobre quem assiste — e sobre quem comanda?
Final ambíguo e provocador
A última sequência, longe de trazer alívio, reforça o desconforto. O clímax se dá não no confronto direto entre polícia e vilão, mas no embate entre o olhar da filha e a verdade que se aproxima. Shyamalan não oferece respostas fáceis — apenas deixa uma pergunta no ar: quantas faces pode ter um pai? E o que resta de nós quando a máscara cai?
Armadilha não se resolve em redenção, nem em punição exemplar. Seu final é o espelho de sua proposta: uma narrativa desconfortável, onde o riso e o medo caminham lado a lado, e onde a maior violência talvez não seja a física — mas a traição emocional silenciosa.
