Em The Unknown Saint (2019), o diretor marroquino Alaa Eddine Aljem transforma uma simples farsa em uma parábola sobre a fé, o absurdo e a esperança. O filme acompanha um ladrão que retorna ao local onde escondeu seu tesouro — apenas para descobrir que o povo o transformou em santuário sagrado.
Onde nasce o milagre
A trama começa com um gesto de desespero: Amine, após um roubo, enterra um saco de dinheiro no topo de uma colina, disfarçando o local com uma pequena construção improvisada. Anos depois, ao sair da prisão, ele volta para recuperar o tesouro — e descobre que aquele pedaço de terra virou um santuário religioso dedicado a um “santo desconhecido”. O crime que ele quis apagar deu origem a uma fé que agora move uma comunidade inteira.
Nesse ponto, Aljem constrói uma fábula moderna sobre a necessidade humana de acreditar. Em um vilarejo árido, onde a vida é escassa e a esperança precisa ser inventada, o povo encontra sentido naquilo que não entende. O túmulo falso torna-se símbolo de algo maior: o poder da imaginação coletiva em transformar o vazio em significado.
A fé como invenção
Com humor contido e um olhar poético sobre o absurdo, The Unknown Saint mostra que a fé é, em certo sentido, uma forma de arte — uma criação que nasce do medo, da falta e do desejo de pertencimento. A devoção dos moradores não é ridicularizada; pelo contrário, é retratada com ternura e respeito. São pessoas simples, movidas por uma fé que não precisa de provas para existir.
Enquanto isso, Amine tenta recuperar seu dinheiro, movido pela ganância e pela culpa. Ele observa, impotente, o milagre que criou sem querer. A ironia é amarga: o homem que procurava riqueza material acaba confrontado com a riqueza espiritual de um povo que acredita em algo que ele sabe ser falso. O filme, então, se transforma em espelho moral — um lembrete de que, às vezes, as mentiras mais sinceras dizem mais sobre nós do que as verdades que insistimos em esconder.
O deserto e o silêncio como personagens
A direção de Aljem é econômica em palavras e generosa em imagem. A fotografia de Amine Berrada transforma o deserto em um personagem vivo — um espaço de solidão e mistério, onde o vento e a luz contam mais do que o diálogo. O tempo se estende, os planos se alongam, e o humor surge nos detalhes, como nas obras de Kaurismäki e Jarmusch, dois autores que também exploram o cômico no trágico cotidiano.
Essa estética contemplativa reforça a ideia de que o sagrado pode brotar do banal. O filme não fala sobre religião, mas sobre humanidade. O túmulo erguido em meio à aridez é, no fundo, o retrato da própria existência: um monumento à capacidade humana de criar sentido, mesmo quando tudo à volta parece deserto.
A farsa que revela a verdade
Em The Unknown Saint, o milagre nunca é mostrado — ele é sugerido. O espectador sabe que tudo começou com uma mentira, mas, ao ver o poder transformador da fé coletiva, percebe que o falso se torna verdadeiro pelo simples fato de ser vivido com sinceridade. O povo acredita, e essa crença cria vínculos, trabalho, esperança. A mentira de um homem se converte em laço social.
Essa ironia é o coração do filme: o que era fruto da ganância se torna fonte de redenção. O ladrão, incapaz de desfazer o mito, é forçado a conviver com ele — e talvez, em silêncio, comece também a acreditar. No fim, o tesouro que Amine buscava não é mais o mesmo: ele está enterrado, sim, mas agora dentro de si, na consciência do que significa ver o mundo com outros olhos.
Entre o riso, a fé e a crítica social
A força do filme está na sua ambiguidade. Ele é, ao mesmo tempo, uma crítica e uma celebração da fé popular. Mostra como o povo marginalizado, abandonado pela modernidade e pela cidade distante, encontra força em suas próprias narrativas. A fé, nesse contexto, é resistência — um modo de existir e de dar dignidade ao que o mundo chama de ilusão.
Essa abordagem sutil aproxima The Unknown Saint dos temas universais da desigualdade e da busca por sentido. Ao mostrar o contraste entre o médico racional e os devotos simples, o filme questiona o que realmente nos move: o conhecimento ou a crença? E, sem tomar partido, responde com poesia — talvez o verdadeiro milagre seja continuar acreditando, mesmo quando a razão se perde.