O documentário segue a trajetória de Drew Dixon, ex-executiva da Def Jam, que, após anos de silêncio, decide denunciar o abuso sexual cometido por Russell Simmons, um dos magnatas do gênero. A obra transforma dor em denúncia e devolve humanidade às vozes apagadas pela cultura da omissão.
Vozes que romperam o muro do silêncio
Drew Dixon é o fio condutor de uma história que se repete com rostos diferentes, mas com a mesma ferida. Brilhante e respeitada produtora nos anos 1990, ela foi responsável por impulsionar carreiras de artistas que definiram uma era. Quando sua trajetória foi interrompida por um abuso cometido pelo homem que deveria ser seu mentor, Dixon se viu encurralada entre o medo e a lealdade à própria comunidade negra. Falar contra Simmons, um ícone da representatividade cultural, significava enfrentar o julgamento duplo: de ser mulher e de ser negra.
O documentário costura sua narrativa com os depoimentos de outras mulheres, como Sil Lai Abrams e Sheri Sher, e de intelectuais como Kimberlé Crenshaw e Tarana Burke. Juntas, elas constroem uma rede de solidariedade que desafia o silêncio imposto por décadas. Não se trata apenas de acusar um homem poderoso, mas de desenterrar uma estrutura inteira que se alimenta do apagamento das mulheres.
O peso de ser mulher e negra na indústria cultural
On the Record vai além da denúncia individual. Ele mergulha na interseccionalidade — a ideia de que gênero e raça não podem ser separados quando se fala de desigualdade. Dixon e suas companheiras não apenas lutam contra o machismo sistêmico, mas também contra o racismo que insiste em questionar a credibilidade de mulheres negras.
A cultura do hip hop, nascida como resistência e empoderamento, é aqui confrontada em sua contradição: ao mesmo tempo em que celebra a voz negra, frequentemente silencia suas mulheres. O documentário mostra o paradoxo doloroso de quem ama um movimento cultural que também a machuca. E é justamente essa dualidade que torna o filme tão poderoso — ele não demoniza o hip hop, mas exige que ele se olhe no espelho.
Entre trauma e coragem
Visualmente íntimo e emocionalmente cru, o documentário utiliza enquadramentos fechados e iluminação suave para dar espaço à vulnerabilidade. As câmeras escutam. As pausas e os silêncios são tão eloquentes quanto as palavras. Cada depoimento é tratado com dignidade, sem pressa, sem espetáculo — apenas o peso real do que é dito.
A montagem intercala essas confissões com imagens de arquivo da era de ouro do hip hop, criando um contraste brutal entre o glamour público e a dor privada. O microfone, símbolo do poder cultural e político das mulheres negras, aqui se transforma em instrumento de libertação. É nele que Dixon encontra novamente sua voz — e, com ela, a chance de se reerguer.
O sistema que lucra com o silêncio
Um dos pontos mais incisivos de On the Record é sua crítica à cumplicidade institucional. A indústria fonográfica, movida por interesses financeiros e masculinidades infladas, fecha os olhos para os abusos e sabota as carreiras de quem ousa denunciar. Dixon perdeu contratos, amigos e oportunidades por se recusar a se calar.
O documentário também denuncia o modo como o mercado e a mídia tratam casos de violência sexual envolvendo figuras negras: com cautela, medo e, muitas vezes, omissão. A obra questiona — sem vitimizar — o duplo padrão moral que pune as mulheres pela coragem de falar e absolve os homens pelo poder de calar.
Cultura, resistência e reparação
Ao revisitar as feridas de uma geração, On the Record se transforma em um manifesto por justiça e memória. Ele revela como o testemunho feminino é um ato de reconstrução histórica — uma tentativa de devolver às mulheres o papel que lhes foi roubado. A presença de Kimberlé Crenshaw e Tarana Burke fortalece o caráter educativo da obra, fazendo dela um instrumento de reflexão sobre o futuro das instituições e da própria cultura popular.
Nesse sentido, o filme não apenas denuncia, mas educa. Ele mostra a importância de ambientes de trabalho seguros, de sistemas de escuta empática e de narrativas que contem a história com a complexidade que ela merece. O feminismo, aqui, é prática de sobrevivência e reparação.