“E se a lei dissesse que todos são iguais — mas a realidade insistisse no contrário?” Essa é a pergunta que move Article 15 (2019), dirigido por Anubhav Sinha. Inspirado no artigo da Constituição indiana que proíbe discriminação por religião, casta, gênero ou origem, o filme mergulha em um caso brutal para mostrar como a letra da lei ainda não é suficiente diante de preconceitos enraizados e instituições corrompidas.
A investigação que revela uma nação partida
O protagonista é Ayan Ranjan (Ayushmann Khurrana), um jovem oficial da polícia recém-transferido para uma área rural. O que deveria ser apenas mais uma missão torna-se um choque cultural e moral: três garotas Dalit desaparecem em circunstâncias misteriosas, e logo o oficial descobre que a verdade envolve abusos sexuais, crimes de honra e uma rede de cumplicidade sustentada pela hierarquia de castas.
A narrativa se constrói como um thriller policial, mas o mistério serve apenas de porta de entrada para um diagnóstico social incômodo. Ao seguir o caso, o público é confrontado com desigualdades que resistem ao tempo e que seguem moldando as relações sociais, apesar de décadas de avanços legislativos.
O peso das castas no cotidiano
O filme não suaviza a dureza da realidade indiana. A divisão entre castas, formalmente proibida, continua determinando quem tem acesso à justiça, ao trabalho digno e até à sobrevivência. Na comunidade retratada, os Dalits são tratados como “intocáveis”, ocupando posições de subserviência e vulnerabilidade.
Essa violência estrutural é mostrada não apenas em crimes brutais, mas em gestos cotidianos de humilhação e exclusão. O olhar do protagonista, vindo de fora daquele contexto, funciona como espelho para o espectador, que também é convidado a sentir o estranhamento de um sistema que normaliza a desigualdade.
Entre justiça e corrupção
Ayan não enfrenta apenas criminosos, mas também o próprio aparato estatal. Investigar o desaparecimento das garotas significa desafiar policiais corruptos, líderes locais e até colegas que preferem proteger tradições do que garantir direitos. O enredo mostra que a maior barreira contra a justiça não está apenas nas leis mal aplicadas, mas em instituições que operam para manter privilégios intactos.
Esse embate reforça o tom político do filme: a democracia indiana é questionada em sua prática, não em sua teoria. Article 15 denuncia como sistemas supostamente neutros podem ser atravessados por preconceitos históricos, tornando a igualdade um conceito distante da vida cotidiana.
Mulheres na linha de frente da vulnerabilidade
Embora o enredo seja conduzido pelo olhar masculino do protagonista, são as mulheres das castas marginalizadas que carregam as maiores dores. O desaparecimento das três garotas Dalit é o motor da trama, mas também o retrato de como a opressão de gênero se soma à discriminação de casta, criando um ciclo de violência ainda mais cruel.
O filme escancara como meninas e mulheres dessas comunidades se tornam alvos fáceis de abusos, seja pela ausência de proteção do Estado, seja pela cumplicidade silenciosa da sociedade ao redor. Nesse sentido, Article 15 amplia sua crítica, ligando desigualdade social, opressão de gênero e violência institucional em uma mesma ferida exposta.
Cinema como denúncia e resistência
Visualmente, o filme reforça sua atmosfera opressiva com uma fotografia sombria, marcada por tons acinzentados e chuvas incessantes, criando um cenário quase sufocante. A estética não é mero detalhe: ela traduz o peso da injustiça e a dificuldade de se respirar em um ambiente dominado por medo e silêncio.
O impacto de Article 15 foi imediato. Aclamado pela crítica, o longa rompeu tabus ao levar para o cinema comercial indiano temas antes restritos a debates acadêmicos ou reportagens isoladas. Sua repercussão internacional também ajudou a iluminar uma questão frequentemente invisibilizada no cenário global.
Quando a lei não basta
Mais do que um thriller policial, Article 15 é um chamado à consciência. Ao mostrar como a lei existe, mas não alcança todos da mesma forma, o filme denuncia uma ferida que não é exclusiva da Índia: a distância entre direitos garantidos no papel e realidades atravessadas por desigualdade, preconceito e violência.
A mensagem final é clara: igualdade não é apenas um princípio jurídico, mas uma prática diária de enfrentamento às estruturas que insistem em perpetuar exclusões. No cruzamento entre entretenimento e denúncia, o longa prova que o cinema pode ser uma poderosa ferramenta de resistência.
