Entre o prazer e a responsabilidade
Quando o mundo pega fogo, fechar os olhos e seguir vivendo como se nada estivesse acontecendo é uma forma de tomar partido. Essa é a provocação central de Três Vidas e Um Destino (Head in the Clouds), filme lançado em 2004 sob direção de John Duigan. Ambientado na Europa dos anos 1930 e 1940, a história mergulha no glamour boêmio de Paris para contar uma história sobre escolhas morais em tempos de guerra.
A fotografa Gilda Besse é o centro da história, interpretada por Charlize Theron, ela é uma mulher rica, livre e devotada ao prazer. A personagem divide um apartamento em Paris com Mia, refugiada espanhola vivida por Penelope Cruz, e Guy, um professor irlandês interpretado por Stuart Townsend. Unidos por uma convivência afetiva que desafia convenções, os três veem suas vidas se entrelaçarem com os rumos políticos da Europa pré-Segunda Guerra Mundial.
Guerra, exílio e lealdade
Quando a guerra civil explode na Espanha, Mia se alista como voluntária. Guy se torna enfermeiro de combate e mais tarde integra a Resistência francesa. Já Gilda insiste em permanecer neutra, vivendo entre festas e retratos da elite. Mas a neutralidade logo se mostra insustentável. Envolvida com um oficial nazista durante a ocupação alemã em Paris, Gilda se torna símbolo de um dilema central do filme: viver sem se comprometer tem consequências, e não escolher também é uma escolha.
As trajetórias dos personagens refletem exílios não apenas geográficos, mas também existenciais. Gilda, filha de mãe francesa e pai canadense, parece nunca pertencer a lugar algum. Mia carrega as marcas da perseguição política, enquanto Guy busca conciliar sua consciência com os laços afetivos. A fotografia, arte central na vida de Gilda, funciona como metáfora dessa busca, seja como documento histórico, fetiche ou lembrança dolorosa.
Estilo clássico e crítica moderna
Visualmente, o filme abraça uma estética de melodrama clássico. Com cenas filmadas em Londres, Montreal, Cambridge e Paris, a obra é marcada por figurinos elegantes, iluminação suave e trilha sonora repleta de jazz francês. A fotografia assinada por Paul Sarossy destaca contrastes entre a decadência dos cabarés e o horror das trincheiras, criando uma atmosfera ao mesmo tempo nostálgica e ameaçadora.
Apesar do elenco renomado e da produção sofisticada, o filme teve uma recepção morna. Com apenas 16% de aprovação no Rotten Tomatoes e uma bilheteria mundial modesta de 3,5 milhões de dólares, a crítica acusou a obra de ser um drama excessivamente glamouroso que se perde em sua própria estética. Ainda assim, ao ser revisto anos depois, revela-se uma reflexão válida sobre a conivência, o exílio e o papel do artista frente aos regimes autoritários.
Memória, legado e atualidade
O desfecho se passa em 1950. Guy, agora sozinho, revisita fotografias de Gilda. Elas não apenas capturam um tempo perdido, mas também evidenciam as escolhas que cada um fez ou evitou fazer. A guerra pode ter acabado, mas os registros daquelas decisões continuam vivos, como cicatrizes impressas em papel fotográfico.
Três Vidas e Um Destino dialoga com temas contemporâneos da agenda global, como igualdade de gênero, acolhimento de refugiados, justiça e cooperação entre nações. Ao colocar o afeto em confronto com a ideologia, o filme mostra que até os relacionamentos mais íntimos são atravessados pela política. No fim das contas, ele deixa uma mensagem clara: diante de regimes opressores, não tomar posição pode custar mais do que se imagina.
