E se um gênio do século XIX usasse um laptop para contar sua história? Em Tesla (2020), dirigido por Michael Almereyda, o cinema rompe as convenções do gênero biográfico para apresentar um retrato não linear, melancólico e surpreendentemente atual do homem que ousou imaginar um mundo movido por eletricidade limpa, acessível e universal.
O filme não se contenta em narrar a trajetória do inventor sérvio-americano. Ele propõe um experimento audiovisual: fundir história, ficção e metalinguagem digital para questionar os limites entre progresso e poder. Ao invés de um tributo heroico, Tesla oferece uma reflexão profunda sobre como a inovação enfrenta, desde sempre, as engrenagens do capital.
Corrente Alternada, Rota Contrária
No centro da narrativa está o embate entre Nikola Tesla (Ethan Hawke) e Thomas Edison (Kyle MacLachlan). Mais do que uma disputa técnica entre corrente alternada e contínua, o confronto representa duas visões opostas de mundo: de um lado, a eficiência voltada ao lucro imediato; do outro, a aposta em um futuro onde a energia circula livremente, sem monopólios ou medidores.
Tesla queria iluminar o planeta — mas para isso, precisaria enfrentar investidores céticos, contratos quebrados e a própria lógica da industrialização nascente. Sua parceria inicial com George Westinghouse (Jim Gaffigan) e o rompimento com o magnata J.P. Morgan (Donnie Keshawarz) ilustram a tensão eterna entre idealismo e pragmatismo, entre invenção e retorno financeiro.
Uma biografia narrada por um MacBook
Anne Morgan (Eve Hewson), filha de J.P. Morgan, surge como narradora onisciente. Em um estúdio branco, ela navega por imagens em um MacBook enquanto narra os altos e baixos de Tesla, rompendo a quarta parede e questionando a própria construção da memória histórica.
Esse anacronismo não é apenas artifício estético. Ele serve para aproximar o espectador da atualidade das ideias de Tesla. Se a proposta de energia sem fio e gratuita parecia delírio há um século, hoje ela ressoa em discussões sobre acesso à tecnologia, sustentabilidade e soberania energética.
Estética da solidão
A fotografia de Sean Price Williams aposta em tons frios, simetria e ambientes vazios para acentuar o isolamento do protagonista. A trilha sonora, com interferências de sintetizadores e até covers de músicas pop, contrapõe o brilho das conquistas técnicas ao silêncio dos fracassos pessoais.
Tesla é retratado como alguém à frente de seu tempo — e, por isso mesmo, condenado à incompreensão. Sua recusa a se adaptar às exigências comerciais o transforma em mártir moderno, incapaz de traduzir sua genialidade em dividendos ou prestígio institucional.
Progresso: entre sonho e disputa
Ao reencenar a Feira Mundial de Chicago de 1893, o filme evoca não só a celebração da eletricidade, mas também o início de uma corrida que moldaria os séculos seguintes. Quem controla a energia, controla o futuro — e essa disputa, ainda hoje, se desenrola em outras frentes: tecnologia de dados, fontes renováveis, redes inteligentes.
A proposta de Tesla — energia distribuída sem barreiras — não venceu, mas persiste como horizonte utópico em tempos de emergência climática e desigualdade energética. Almereyda faz do cinema um espaço para reimaginar essa história: não com nostalgia, mas com senso crítico.
Tesla, ontem e amanhã
Mais do que reconstituir a biografia de um inventor, Tesla levanta questões urgentes. O que define o sucesso de uma ideia? Como equilibrar inovação e responsabilidade? É possível imaginar soluções tecnológicas que não sirvam apenas ao lucro? Ao entrelaçar passado e presente, o filme aponta que tais dilemas continuam vivos — e talvez ainda sem resposta.
